por Filipe Lutalo
No mercado de trabalho, na política, como representantes de turma nas escolas e em muitos outros lugares, as mulheres mostram que são competentes e capazes. Isso não é diferente nas equipes de videogame e nas mesas de RPG.
Nossa geração é fruto de uma cultura machista que por milênios diminuiu e menosprezou a importância da mulher. As mulheres são tratadas como o “sexo frágil”, seres humanos que necessitam ser protegidas, criaturas emotivas, desajeitadas, e uma infinidade de outros adjetivos depreciativos e desumanizadores. Entretanto, isso vem mudando graças ao movimento feminista que busca um mundo melhor e equânime para todas e todos.
A visão depreciativa e errônea descrita acima que muitas pessoas têm das mulheres nunca foi perpetuada na casa de minha mãe. Eu, único homem em uma família de cinco mulheres, via em todas elas estudavam, trabalhavam e que nunca dependeram de um homem para as proverem. Dentro das brincadeiras, todos nós éramos incentivados a brincar juntos. Não havia distinção entre o que era para meninos ou meninas. Brincar sempre foi coletivo.
Umas das brincadeiras que mais gostávamos de fazer juntos era os jogos de tabuleiros. Chamávamos os colegas vizinhos e o “páu quebrava”. Detetive, War II, Scotland Yard, Dama, xadrez, Jogo da Vida, Ludo, Monstros, eram alguns dos nossos repertórios
Montagem: RPGames Brasil. Não há distinção entre meninos e meninas na sua intelectualidade e capacidade de aprendizagem. |
Não tinha colher de chá para ninguém e não havia surpresa quando uma menina ganhava. Todos partiam de um lugar que não havia diferenças intelectuais entre nós devido ao sexo. Vencia o melhor, o mais esperto ou esperta. Tudo era muito saudável.
Nas primeiras mesas de RPG que joguei e fui o mestre, havia um misto de rapazes e moças. Meus estranhamentos ocorreram quando narrei para outros grupos. Primeiro, só tinha homens e segundo, o nível de jogo era muito aquém do meu primeiro grupo de RPG.
Esses dois fatores me fizeram observar o quanto a cultura machista é tóxica para os meninos e meninas. Algumas sessões eram frustrantes. Os meninos buscavam descobrir no cenário do jogo a sexualidade que buscavam na vida real. Tentavam se afirmar uns sobre os outros. Em muitas sessões, o grupo de personagens dos jogadores buscava o prostíbulo fictício da vila. Havia um comportamento agressivo entre eles, que descambava para assédio moral e bullying entre si.
Reprodução: O comportamento tóxico dos meninos se reverte em vários aspectos da vida. Não ao Bullying. |
Esses comportamentos diminuíram quando a prima de um dos meninos começou a jogar. Surpresa de todos quando perceberam que ela conseguia mais pontos de experiência em uma sessão por boa interpretação, entendia mais das regras de combate que os próprios veteranos e tinha ideias mais criativas.
Em mesas mistas, percebi também que os melhores planos para o seguimento da aventura eram das meninas. Enquanto as ideias dos rapazes se resumiam a sentar o pé na porta ir para a porrada, elas utilizavam de táticas de infiltração, espionagem, posicionamentos com atiradores snipers, subornos quando necessário, diplomacia, lábia e a violência em último caso. O repertório de opções era muito mais vasto que os dos rapazes.
Esse contraste me levou a analisar o porque das diferenças entre os níveis das sessões quando tinha uma presença feminina. A mesma cultura que autorizava os meninos a serem escrotos, exigia que eles diminuíssem os comportamentos tóxicos porque não queriam ser vistos como completos idiotas pela menina. Outra situação era que a criação dada a elas e eles, delegava a violência como “coisa de homem”, e que uma menina para ser bem-aceita precisa saber dialogar, não falar palavras de baixo calão etc. Esses comportamentos impostos as meninas talvez levassem elas a pensar fora da caixa e a resolver as coisas por meios diferente da violência. Do contrário, o mesmo comportamento estimulado nos meninos ressaltava a violência.
Reprodução: Strange Things mostra que na luta do bem contra o mal, não existe diferença entre meninos e meninas. |
Estar em uma mesa mista é um desafio social. A toxidade do machismo pode levar os garotos a oprimirem as meninas e fazer com que elas detestem o RPG. Não porque o jogo é ruim, mas por que a experiência se torna ruim quando os rapazes direcionam toda a sua agressividade para as meninas. “Como assim, ela ganhou de mim?”. Mestres e mestras precisam estar atentos para coibir quaisquer comportamentos inadequados. Evitar a superproteção sobre as meninas ou sobre os meninos e dar oportunidades iguais para todos se divertirem. Todas e todos tem o direito de estar ali e o respeito deve ser imperativo.
Em mesas mistas, desde que o respeito e o desejo de se divertir em conjunto impere, todos saem ganhando. Quando os mundos colidem e a diversidade se torna algo substancial, novas ideias surgem e as histórias crescem em profundidade, diversão e satisfação.
Dou um alerta aos meninos. Se em suas mesas as meninas se negam a jogar, provavelmente, existe um problema com os rapazes que integram as suas mesas. O problema, não é com elas, é com vocês. Como bem ressalta Carolina Neves (1), a necessidade de existir um vagão rosa nos trens de São Paulo apenas para as mulheres não se deve à vontade delas, mas ao comportamento machista dos homens.
Créditos RPGames Brasil: Mesa mistas no evento da Ethernalys é provas que todos e todas tem o direito à diversão. Respeito em primeiro lugar. |
Voltar para as mesas mistas salvou as campanhas que eu mestrava. Os comportamentos tóxicos do machismo eram vetados e as meninas mostravam suas capacidades sem medo. Os jogadores aprenderam entre si a utilizar novos repertórios. Nos incentivávamos à cooperação e ao respeito. Aprendemos que o sexo não define se uma pessoa é boa ou não para atividades como jogar RPG, videogames e outras atividades, mas é a capacidade de cada pessoa para entender o que se propõe na aventura e suas experiências de vida.
Todas e todos tem o direito de se divertirem de forma saudável. Todas e todos tem muito a contribuir para um bom jogo. Machismo, RPG e diversão, não combinam. Devemos banir os comportamentos machistas para que a diversão de todos seja plena e saudável.
(1) NEVES, Carolina. De quem é a Vez? - RPG Indagações. Editora Cha, São Paulo, 2020.
Falou td e mais um pouco Filipe, parabéns pela postagem!
ResponderExcluirObrigado José! É um longo caminho que temos que percorrer, mas vale a pena lutar por um mundo melhor.
ExcluirParabéns por mais um post incrível, meu caro amigo! Abordar este tema é cada vez mais necessário, considerando o aumento no número de pessoas com interesse no RPG e jogos analógicos que naturalmente atrai o público feminino que ainda sofre estigmas da cultura machista em muitos meios do RPG. Ótimo trabalho!
ResponderExcluirHenrique, obrigado. Precisamos fazer uma reflexão constante e construir uma prática coerente com o discurso. O trabalho sempre é recompensador.
ExcluirFilipe como sempre mandando bem e explicando o que de fato é uma situação machista em uma mesa.
ResponderExcluirE digo mais, não é somente em mesa mista que esse tipo de atitude deve ser coibida, mas nas mesas onde existe apenas homens, é nas suas atitudes que você ensina o próximo a viver em sociedade com os demais, principalmente com as mulheres, afinal, nenhum homem veio do ovo, mas sim do ventre de uma super mulher. Logo é necessário a instrução saudável fora e dentro das mesas mistas, sabemos que algumas pessoas das gerações passadas vieram de criações de mentes machistas implicadas pela sociedade, mas muitos estão dispostos a aprender e sair desse mundo, mas para isso, nós que aprendemos e convivemos de maneira adequada podemos ajuda-los com nossas posturas, conhecimentos e sugestões, e não dando porrada, mas ensinado o caminho correto.
Walison Jorge, obrigado pelo comentário. Comportamentos podem ser mudados. Basta abertura. O machismo é algo que pode impactar negativamente nas meninas e nos meninos. Repensar a forma de estar em sociedade é urgente em todos os ambientes.
ExcluirUm pensamento recorrente que me vem é do público que o RPG deixou de alcançar através dos anos por conta do ambiente tóxico em que o meio pop-nerd-geek se desenvolveu...
ResponderExcluirPois é! Todos saem perdendo.
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